Investigando o que nos acidenta, adoece e mata
Todas as considerações apresentadas aqui têm como base a análise dos dados coletados por meio das pesquisas bibliográficas, documentais e de campo utilizando instrumentos como enquete sindical, entrevistas em profundidade, relatos e observações participantes não-sistemáticas de visitas de campo e em acúmulos produzidos pelos debates no Grupo de Trabalho em Saúde composto por trabalhadoras/es da ciência e técnica/os do Sistema Prisional organizadas/os no SINDASEP-MG.
1 O que dizem as ciências sobre a relaçào trabalho e saúde de trabalhadores não policiais nos sistemas prisionais?
O cárcere acidenta, adoece e mata os seus trabalhadores e trabalhadoras.
E isso não ocorre apenas no Sistema Prisional de Minas Gerais.
No âmbito deste projeto, está em curso uma pesquisa bibliográfica por meio do método de revisão de escopo (scoping review) JBI Manual for Evidence Synthesis (2020) com o objetivo de identificar os debates e lacunas críticas na literatura acadêmica sobre a relação do trabalho e a saúde de profissionais não policiais atuantes no Sistema Prisional sob o modo de produção capitalista. O protocolo desta pesquisa pode ser acessado e reproduzido em Bechara-Maxta et al. (2023).
Em linhas gerais, tem sido identificado poucos estudos voltados ao corpo técnico de trabalhadores e trabalhadoras em sistemas prisionais nacionais e internacionais. Foram analisados 26 textos no tocante à identificação das manifestações de morbimortalidade e sua relação com elementos dos processos de trabalho e/ou produção do cárcere. (Dennard et al. 2021; Tohochynskyi et al. 2020; El Ghaziri et al. 2019; Ferreira and Paschoal 2023; Fusco et al. 2021; Genest, Ricciardelli, and Carleton 2021; Isenhardt, Hostettler, and Ramseier 2019; Jaegers et al. 2022; Johnston, Ricciardelli, and McKendy 2024; Karaaslan and Aslan 2019; Lambert et al. 2022; Maculan and Sterchele 2022; McKendy and Ricciardelli 2023; Mivshek and Schriver 2024; Paschoal and Ferreira 2023; Sygit-Kowalkowska, Pastwa-Wojciechowska, and Robert 2023; Ricciardelli and Carleton 2022; Santos and Ferreira 2023; Souza and Paschoal 2023; Stephenson and Bell 2019; Zhang et al. 2019)
Nestes, os trabalhadoras/es não-policiais que atuam em sistemas prisionais em diversos países apresentam quadros de morbidades como: burnout, sensação de isolamento, exaustão, estresse, sensação de despersonalização, desilusão, depressão, quadros emocionais drásticos, ideação e/ou tentativa de suicídio, transtornos de estresse pós-traumático, ansiedade, dores musculoesqueléticas e sobrepeso. Parte dessas manifestações tem se desdobrado em outras, como conflitos domésticos, alteração na qualidade e na quantidade de horas de sono, dificuldades em comunicar o estado de saúde e perda do senso de perigo e de morte. Os fatores presentes nos processos de trabalho destas trabalhadoras/es que apresentam algum tipo de correlação com estas manifestações foram identificados como: a sobrecarga de tarefas nas jornadas de trabalho, ações violentas vivenciadas no trabalho e a sensação de periculosidade, as dificuldades operacionais de coordenação funcional dos espaços prisionais, os desalinhos entre jornada de trabalho e a vida fora do trabalho e os quadros de burnout como desencadeadores de outros sintomas de adoecimentos.
Nestes estudos, as múltiplas determinações da constituição das situações de morbimortalidade no trabalho não foram consideradas em seus desenhos metodológico, logo limitados no tocante a necessária exposição das correlações e continuidades entre processos concretos de trabalho e o adoecimento dos/as trabalhadores/as. Com isso, a saúde dessas/es trabalhadoras/es é comumente apresentada no escopo acadêmico como um estado momentâneo, uma fotografia, quase sempre caracterizado pela associação de uma manifestação a um fator do processo de trabalho com abertura para a possibilidade reconhecer o seu nexo causal e/ou fatores de risco no trabalho.
Desconsidera-se, então, a situação da saúde-doença dos/as trabalhadores/as não policiais do cárcere como processo social, no qual o dispêndio diário das energias físico-psíquicas desta força de trabalho é, frequentemente, submetido a processos de trabalho, cujas cargas de trabalho implicam - não sem resistências individuais e coletivas - em formas de desgastes de seus corpos e de limitações para a sua reprodução, as quais manifestam-se, muitas vezes, em acidentes, adoecimento e mortes antes mesmo de se tornar evidentes em termos epidemiológicos.(Laurell and Noriega 1989a; Laurell 1982)
Sobre os limites dos desenhos metodológicos frente a realidade concreta da produção do cárcere e a saúde de suas trabalhadoras/es, uma vez que o neopositivismo presente na epidemiologia e/ou nas ciências sociais apontam que as categorias não policiais atuantes nos cárceres manifestam um conjunto próprio de adoecimentos e mortes, e estes se apresentam vinculados a elementos organizacionais e de gestão do trabalho no cárcere, é movimento acadêmico crítico superar tais limitações epistemológicas para se buscar apreender não somente estas manifestações aparentes e o nexo destes problemas para alertar os trabalhadores e trabalhadoras acerca dos riscos dos acidentes, adoecimentos e mortes, mas para compreender os elementos das suas constituições no processo de produção do cárcere de forma a avançar nas intervenções técnico-científico alinhadas com as organizações da classe trabalhadora sobre tais elementos pela defesa da sua saúde.
2 O processo de produção compartilhada do conhecimento entre trabalhadoras/es das ciências e trabalhadoras/es organizados no SINDIPA-MG
No contexto da segurança pública de Minas Gerais, ainda que não próprio dele, o Sistema Prisional é conformado pela relação entre os diferentes grupos de trabalhadores, ou seja, das pessoas privadas de liberdade (PPL) - pois estes, majoritariamente, também eram trabalhadores antes de serem presos, dos/as agentes de segurança (assim denominados de polícia penal (Brasil 2017a)) e dos/as auxiliares, assistentes, analistas e médicos da defesa social (ou corpo técnico de assistência às PPLs (Brasil 2017a)), mediados por um conjunto significativo de normativas e/ou de políticas de segurança pública e de execução penal sob mecanismos administrativos e de gestão do trabalho de pulso militar, assim organizados em equipes de trabalho nas unidades prisionais.
Nestas unidades, embora todas estas categorias sejam frações da classe trabalhadora, portanto atuantes enquanto mercadorias força de trabalho para a produção do cárcere, e o processo de constituição da situação adoecimento-saúde seja algo comum a todas elas, por certo, sob raízes comuns dadas a função e instrumentalização do cárcere na sociedade capitalista, cada uma destas frações apresentam particularidades sobre este processo que precisam ser conhecidas para o fortalecimento das luta mais amplas pela saúde no Sistema Prisional.
Art. 3º - Os cargos das carreiras de que trata esta lei são lotados nos quadros de pessoal administrativo dos seguintes órgãos do Poder Executivo: I - na Secretaria de Administração Prisional - Seap - e na Secretaria de Estado de Segurança Pública - Sesp -, os cargos das carreiras de Auxiliar Executivo de Defesa Social, Assistente Executivo de Defesa Social, Analista Executivo de Defesa Social e Médico da Área de Defesa Social
No tocante aos processos saúde e doença de trabalhadores e trabalhadoras direcionado para a assistência às pessoas privadas de liberdade, a pesquisa bibliográfica evidenciou uma falta de intencionalidade científica e política para com as questões da relação trabalho e saúde próprias das/os próprias/os trabalhadores dos sistemas prisionais. É ausente o questionamento do porquê aquelas manifestações de adoecimento acometem as trabalhadoras e aos trabalhadores do corpo técnico dos sistemas prisionais.
Neste movimento investigativo, partimos da questão: quais são, então, os elementos de determinação dos processos de trabalho de auxiliares, assistentes, analistas e médicos/as do Sistema Prisional os quais conformam a situação de saúde-doença destas categorias profissionais?
Para responder a essa questão, é necessário investigar, num primeiro momento, três elementos determinantes da produção da saúde-doença, a saber: as condições de trabalho, as relações de trabalho e as condições de reprodução da vida. Afinal, se temos as nossas energias físico-psíquicas consumidas como mercadoria força de trabalho, ela, num processo de desgaste contínuo do labor diário, necessita ser recomposta. E, isso, ocorre fora do processo de trabalho, mas não necessariamente, fora das unidades prisionais, como veremos (REPORTAR).
4 Relações de trabalho: a gestão pelo medo
As relações de trabalho são todas aquelas envolvidas no fazer do cotidiano da vida no trabalho. Muitos desses fazeres são direcionados pelos regulamentos federais e estaduais, pelos códigos de ética de profissões entre outras normativas de Conselhos Profissionais, etc. Contudo, é no fazer diário que essas letras ganham vida conforme o caráter da administração e gestão das unidades. Conforme demonstram os dados, em linhas gerais, o que reina no Sistema Prisional é a gestão caracterizada pelo medo, aquela que produz e reproduz relações de assédio, por exemplo.
O assédio é uma prática que ocorre com frequência dentro do sistema srisional, seja entre os dois grupos de trabalhadoras/es, ou intragrupos. Numerosos são os relatos de auxiliares, assistentes, analistas e médica/os do sistema que já sofreram ou presenciaram algum tipo de assédio (56% dos respondentes afirmaram que já sofreram assédio, ocasionalmente [22%], frequentemente [19%] e muito frequentemente [15%]). Em alguns casos, o assédio vêm transvestido na forma dos pedidos recorrentes da gestão para que sejam atendidas demandas de trabalho que não fazem parte das responsabilidades do/a servidor/a (pode-se verificar na enquete que houve a incidência de 71% de respostas das alternativas somadas muito frequentemente [33%], frequentemente [19%] e ocasionalmente [19%] a pergunta realizo tarefas em meu trabalho que não são previstas pelo cargo que ocupo). Um exemplo desses pedidos é a solicitação para que atendimentos pudessem ser prestados à PPLs em unidades prisionais distintas daquelas em que estão alocados. Essa prática, conhecida internamente como emprestadinhas, além de desvio da função ainda é classificada como ilegal, segundo o Sindasep-MG. (REPORTAR)
Podemos inferir que os pedidos são praticamente irrecusáveis, não porque são benéficos para os trabalhadores e para as PPL; mas porque as relações de trabalho no Sistema Prisional podem ser caracterizadas como relações de trabalho geridas pelo medo, ou pelo menos, para simplificar, assim chamamos o modelo de gestão que caracteriza o sistema onde sentir-se leve e tranquilo(a) com as minhas responsabilidades profissionais não é realidade para 57% dos trabalhadores e trabalhadoras ou, em outros termos, 73% se sentem pressionado(a) para cumprir metas em meu trabalho (26% muito frequentemente, 22% frequentemente e 25% ocasionalmente). Ademais, no que diz respeito à autonomia nos processos de trabalho do cárcere, as manifestações somadas de pouca ou inadequada situação (58%) superam as manifestações de adequada ou muito adequada situação (42,1%).
Este medo não tem raízes na relação dos respondentes auxiliares (100%), assistentes (74%), analistas (87%) e médicos (67%) com as pessoas privadas de liberdade, pois 80% deles caracterizam essa relação como respeitosa. Esse percentual cai para 64% quando se considera a relação com os agentes de segurança e as direções das unidades prisionais. Não apenas são os números que sustentam a existência de uma gestão pelo medo. Relatos exemplificam que a submissão aos pedidos das direções ocorre devido às possíveis punições futuras que vão do corte de acesso ao Sistema Eletrônico de Informações (SEI) à abertura de processos disciplinares - sem deixar de mencionar as possíveis retaliações no processo de avaliação de desempenho voltados para a para progressões e promoções, portanto obstáculos a um pequeno aumento na renda familiar desta categoria profissional.
Em um ambiente marcado pelas restrições nas condições e permissões para o trabalho com a PPL e pela intensificação do trabalho sob a tônica da gestão pelo medo, não é surpresa que os Auxiliares, Assistentes, Analistas e Médicas/os do sistema sintam-se, sobrecarregados pelo trabalho resultando em altos índices de afastamento e uso de medicamentos.
As manifestações do adoecimento entre esses trabalhadores resulta de um processo de produção do cárcere que concomitantemente também é um processo da produção de saúde-doença que pode ser mitigado, em maior ou menor grau, conforme as formas de resistências individuais e coletivas. Os afastamentos, o uso de medicações e o desenvolvimento de atividades de autocuidado são um meio de tratar os sintomas das doenças vividas individualmente por cada um e cada uma. Sintomas resultantes de um processo de trabalho submetidos a certas determinações sociais que constituem o que é a função do cárcere no capitalismo contemporâneo. Dessa forma, não surpreende, que o apoio da instituição para os trabalhadores e trabalhadoras lidarem com os riscos e/ou cargas no trabalho tem pouca (32%) ou nenhuma adequação (52%) às necessidades desses profissionais da assistência. A produção do cárcere acidenta, adoece e mata não por causalidade, mas sob um projeto (REPORTAR).
Tal projeto não é planejado por nenhum dos três grupos que constituem o cárcere, mas que precisa encontrar neles os meios de sua realização. A gestão pelo medo é apenas uma das formas dessa adequação e que, por isso, também precisa encontrar entre os trabalhadores e as trabalhadoras aqueles mais aptos para colocá-lo em prática. Conforme nos demonstram os dados, tais aptidões não estão sendo encontradas entre os trabalhadores e trabalhadoras do corpo técnico. Os dados quantitativos nos mostram que 73% afirmam que nunca ou raramente existe igualdade de oportunidades no sistema e não foram raros os relatos de processos de seleção para cargos de direção em que ocorreram o uso de medidas que colocam em xeque a imparcialidade das seleções. Atualmente, com o ingresso de agentes de segurança com ensino superior, a maioria dos cargos de gestão/direção são ocupados pelos policiais penais em detrimento de pessoal analista do corpo da assistência, única categoria, que por força da demanda do processo de trabalho impõe a formação superior para o ingresso na carreira.
As condições de trabalho precárias, a falta de profissionais no corpo técnico da assistência e gestão pelo medo são as formas imediatas que o processo de produção do cárcere assume na efetivação deste Projeto que intensifica os desgastes das forças de trabalho das trabalhadoras e dos trabalhadores constituindo um nexo biopsíquico que só não é, como tem um grau maior de adoecimento devido às diferentes formas de se produzir a saúde acionadas por atos de resistência individual e coletiva dos auxiliares , assistentes, analistas e médicos REPORTAR.
Porém, as manifestações de adoecimento não são determinadas apenas pelo processo de trabalho a que se está submetido/a. A forma como reproduzimos a vida também determina essa composição do nexo biopsíquico e a propensão às manifestações de adoecimento, pois é fora do tempo de consumo das energias físicas e psíquicas que as reproduzimos enquanto capacidade de trabalho. Mas o tempo e as condições para essa reprodução são determinados pelo modo como estão dadas as relações de produção em que estamos envolvidos. Em outras palavras, as condições de reposição das nossas forças de trabalho são determinadas - intensiva e extensivamente - pelos limites da jornada de trabalho e por nossos salários.
5 Sobre a jornada de trabalho e salários
É no processo de trabalho que a força de trabalho é consumida. O desgaste diário de nosso corpo e mente - em sua intensidade e extensão - é sentido na forma de manifestação da nossa saúde, pois é no processo de produção que também produzimos nossa saúde-doença. Mas, não somente! A recomposição da nossa capacidade para o trabalho ocorre fora do tempo deste. São nos momentos de descanso, de convívio social, de desenvolvimento de atividades intelectuais, de lazer, etc, que recompomos as nossas energias físico-psíquicas para a condução da vida. Nesse sentido, discutir os limites da jornada de trabalho, a carreira enquanto expressão de etapas para se chegar à aposentadoria e nossos salários, significa colocar em xeque em quais condições estamos conseguindo reproduzir nossas energias vitais de modo que a produção da saúde seja intensificada ou não.
5.1 Jornada de trabalho: a luta por tempo para reproduzir a força de trabalho
Jornadas de trabalho desgastantes exigem mais tempo fora do trabalho com qualidade para a recomposição do corpo e da psique. Por isso, historicamente, a classe trabalhadora luta pela redução absoluta da jornada de trabalho, mas não apenas por isso. Os limites da jornada de trabalho também representam a proporcionalidade da distribuição da riqueza social. Para os trabalhadores e trabalhadoras, esta assume a forma de salário.
Cabe registar, que as/os trabalhadoras/es do Sistema Prisional, tal como os demais servidores públicos - excluindo os de empresas produtoras de mercadorias de propriedade estatal - são trabalhadores improdutivos dentro da concepção da sociedade capitalista, pois do seu trabalho não se extrai produção de mais valor. Entretanto, a determinação de seus salários é dada quando ingressam no mercado. As suas jornadas contêm um tempo de trabalho pago e um tempo de trabalho não pago, de modo que não é equivocado afirmar que há a exploração dos trabalhadores assalariados improdutivos. Assim, o conflito existente nos setores produtivos do capital entre o tempo de trabalho não pago e o tempo de trabalho pago, ocorre também com os trabalhadores assalariados improdutivos (Marx and Engels 2007). Vale destacar que, nesta discussão, afirmar a improdutividade do trabalhador não resulta de uma avaliação moral, mas de uma análise econômica. A produtividade do trabalho é uma categoria econômica que expressa quais os trabalhos sociais estão diretamente produzindo a valorização do valor, ou seja, sendo fonte de mais valor. Trabalhadores improdutivos também produzem valores de usos com seus trabalhos, mas esse resultado não é substrato de valor, e assim, não é elemento de valorização do capital. Por isso, Marx (Marx 2013) menciona que ser trabalhador produtivo, no capital, é antes um azar. Além disso, ambos trabalhadores, produtivos e improdutivos, estão inseridos em uma relação de exploração.
Os salários dos servidores públicos em geral, e dos corpos de assistência e segurança do Sistema Prisional, em específico, são pagos pelo erário público, ou seja, pelo fundo público que é formado pelo mais-valor que assumiu a forma de impostos. A distribuição do mais valor, enquanto grau da riqueza social, quando assume a forma de salários para trabalhadores improdutivos alocados no Estado, significa, para a classe trabalhadora tanto um apropriar-se diretamente da riqueza social, quanto indiretamente, posto que o trabalho dos servidores públicos embora improdutivo sob o ponto de vista da valorização, atende de modo útil às necessidades gerais da classe trabalhadora (Ferraz, Chaves, 2021). Por outro lado, para a classe capitalista, reduzir a jornada de trabalho de modo relativo, sem alterar os salários, significa menor grau de apropriação da riqueza produzida pelos trabalhadores.
Assim, as condições de reprodução da vida da classe trabalhadora e, por consequência, as condições de produção de nossa saúde-doença têm como elementos centrais a disputa pela redução da jornada de trabalho de modo absoluto e, também, de modo relativo. Isto é, a luta pela redução da parte da jornada de trabalho em que trabalhamos gratuitamente seja para um capitalista, seja para o Estado. A redução absoluta da jornada de trabalho nos libera mais tempo de vida, a redução do tempo de trabalho gratuito em relação ao não gratuito, representa maior apropriação da riqueza na forma salário e com isso uma tendência a melhoria das condições de vida em geral.
Dito isso, não tem como desconsiderar esses dois aspectos no que se refere à esfera da reprodução da vida, sobretudo, no que diz respeito à produção das manifestações de saúde-doença.
No Sistema Prisional mineiro, diversas são as formas de composição da jornada de trabalho, isso decorre da natureza da divisão técnica do trabalho e o modo como cada profissão, num histórico de luta, conseguiu limitar o máximo da jornada diária. Assim, encontramos jornadas aplicadas na forma de plantões de 10 horas na modalidade 4x1, escalas de 8 (oito) horas diárias sob turnos administrativos, 8 (oito) horas na modalidade corridas, plantões 12/36 horas ou 6 (seis) horas diárias. Independente do formato, fato é que 63,1% da categoria considera a jornada de trabalho inadequada (31,1%) ou pouco adequada (32%), isso porque, ainda que distribuído de modo distinto, na prática, todos cumprem o mesmo montante de horas semanais de trabalho, o que significa passar a maior parte do nosso dia tendo nossas capacidades de trabalho sendo exploradas.
Cada modo traz e impõem ao trabalhador e a trabalhadora um grau de desgaste para a força de trabalho. Condensar a jornada semanal em quatro dias, intensifica o desgaste nos dias de trabalho. A pergunta que resta é: o dia fora do sistema produzido pela condensação compensa o desgaste?
Não há uma resposta cabal para essa pergunta, mas é possível considerar alguns ganhos imediatos, como por exemplo a redução do tempo de vida gastos em deslocamentos casa-trabalho/trabalho-casa (cuja mediana é de 1hora diária), um tempo, geralmente, perdido, pois não é remunerado, tampouco, usado para uma reposição de qualidade da força de trabalho - dado as qualidades do transporte coletivo ou das estradas e trânsito. A “economia” de 1 hora no dia é adquirida também pela supressão do horário de almoço na escala 8 (oito) horas na modalidade corridas. Porém, o que se ganha por um lado, se perde pelo outro. As pausas nas jornadas de trabalho são os espaços para a reposição saudável de energia, o consumo ininterrupto das força de trabalho impõe ao corpo uma adaptação que em médio prazo constitui-se como base para a fadiga. Seja pelo ritmo sem interrupções de trabalho, seja pela forma precária de alimentação do corpo.
Assim, no relato dos trabalhadores/as, a discussão sobre o conflito entre a extensão da jornada de trabalho e da jornada fora do trabalho assume a tônica da constatação que a escala de trabalho dos técnicos não permite o devido exercício de suas atribuições, por ser altamente exaustiva, principalmente quando se leva em conta que as unidades prisionais se encontram distantes da residência dos trabalhadores. Em face do exposto, os trabalhadores e trabalhadoras do corpo da assistência não deixam de expor a comparação com a expansão da jornada do corpo da segurança. Enquanto grande parte dos agentes penitenciários exercem jornada do tipo 24x72h, cumprindo cerca de 7 a 8 jornadas por mês, os técnicos chegam a trabalhar 23 dias no mês, em jornadas que, se considerar o translado residência-trabalho e trabalho-residência, podem ultrapassar 12h diárias. Assim, nota-se a ausência de uma jornada de trabalho adequada às condições de descanso físico e psíquico para esta categoria profissional.
Considerando esse ponto, cabe ainda indagar se há possibilidade de algum espaço para a reposição das energias físico-psíquicas dentro da jornada de trabalho. Em outras palavras, como são as condições que os servidores do Sistema Prisional encontram durante a jornada de trabalho para repor as forças físicas-psíquicas que estão sendo consumidas no processo de trabalho?
Igualmente, são momentos de reprodução da força de trabalho os intervalos para alimentação. No Sistema Prisional, tanto a comida quanto o ambiente para a alimentação são tão precários quanto às condições de trabalho. As visitas in loco e os relatos revelam a inexistência de condições saudáveis de alimentação durante a jornada de trabalho. Não há espaços adequados para as refeições e, quando existem espaços, ainda que inadequados, os trabalhadores e trabalhadoras buscam alternativas, por vezes, necessitando custeá-las com o próprio salário. Exemplo disto, é a arrecadação coletiva de dinheiro para a aquisição de fogões, geladeiras, cafeterias, etc. para compor uma copa em que possam preparar seus próprios alimentos - enquanto alternativa a refeição disponibilizada pelo Sistema Prisional que é considerada de baixa qualidade - e tomar um café (em geral, também adquirido pelos próprios servidores) enquanto forma de manter a atenção no trabalho pela ingestão de produtos estimulantes. As condições disponibilizadas pelo sistema para a recuperação da capacidade de trabalho intrajornada, portanto, estão aquém das condições necessárias à demanda da corporeidade das trabalhadoras e dos trabalhadores, sendo um fator que acresce o desgaste da força de trabalho e as fontes de manifestação de adoecimentos.
Mas, como se não bastasse isso, é possível afirmar que, nem sequer, as condições necessárias para a recomposição normal da força de trabalho são garantidas fora da jornada de trabalho. Isso decorre do elemento baixos salários.
5.3 Carreiras e malha salarial
Aqui, abordaremos a estrutura de carreira dos Auxiliar Executivo de Defesa Social, Assistente Executivo de Defesa Social, Analista Executivo de Defesa Social e Médico da Área de Defesa Social. Cada uma delas possui cargos agrupados e estruturados em níveis e graus. Cada cargo específica lotação, remuneração, quantitativo, atribuições e responsabilidades definidos em lei, ou seja, passíveis de modificação em qualquer tempo. Atualmente, a estrutura de carreiras segue a (Brasil 2017b):
5.4 Avaliação de desempenho e intensificação de conflitos
As progressões e promoções destas categorias profissionais são reguladas pela (Minas Gerais 2017), que estabelece a necessidade de avaliações de desempenho para as diferentes mobilidades e as respectivas alterações salariais. Contudo, a lei não estabelece qualquer caráter discricionário acerca dos critérios para avaliação, sendo na prática utilizados aqueles apresentados pela (Minas Gerais 2003)que cria, sob novos órgãos, a carreira de Policial Penal neste Estado.
São critérios para a avaliação de desempenho: a qualidade no trabalho; a produtividade no trabalho; a iniciativa; a presteza; o aproveitamento em programa de capacitação; a assiduidade; a pontualidade; a administração do tempo e a tempestividade; o uso adequado dos equipamentos e instalações de serviço; a contribuição para redução de despesas e racionalização de processos no âmbito da instituição; e a capacidade de trabalho em equipe. Porém, esses critérios são vagos e não levam em consideração as condições de trabalho necessárias ao atendimento deles.
A interpretação e preenchimento desses critérios fica sob responsabilidade daqueles que compõem a mesa de avaliação dos profissionais, podendo ser formada por trabalhadores pertencentes ao corpo dos agentes de segurança ou por pessoal do corpo de assistência com formação/profissão distinta do avaliado. Essa situação abre brechas para avaliações pautadas por conflitos pessoais e arbitrários. Além disso, a comissão de avaliação de desempenho é presidida pelo Diretor do estabelecimento penal. E, como apresentado nas reflexões sobre a forma de gestão ser pautada pelo medo, esse processos assumem o caráter potencial de se tornarem instrumentos de punição.
São relatos de trabalhadores e trabalhadoras que, ao acompanhar as comissões de avaliação, identificaram parcialidade avaliativa, demonstrando que a sensação de medo dentro das relações de trabalho no Sistema Prisional tem base concreta. Nestes, há menções de sensação de injustiça ao lado da sensação de impotência, pois o temor de ser prejudicado caso não siga as orientações dos responsáveis pela avaliação levam à reprodução da gestão pelo medo. Tais tensões nas relações de trabalho compõem a carga de trabalho psicológica com a qual, cotidianamente os auxiliares, assistente e analista convivem, sendo determinante para a composição do nexo biopsíquico dos trabalhadores e trabalhadoras e suas distintas manifestações de saúde-doença.
A insegurança nas relações de trabalho se intensifica quando a suspensão ou o afastamento das funções específicas do cargo que não estejam previstas como de efetivo exercício que o servidor/servidora determina uma parada na contagem do tempo de trabalho para efeitos de promoção e progressão. E, não nos esqueçamos, nos últimos 5 (cinco) anos, os afastamentos do trabalho em função de adoecimentos ou acidentes decorrentes dos processos de trabalho no Sistema Prisional foram presentes em 56% das/os trabalhadoras/es.
Identificamos, assim, que os instrumentos de gestão - Plano de Carreira e Avaliação de Desempenho - compõem um formas de concentração de poder cuja tendência é a intensificação da carga psíquica de trabalho (Laurell and Noriega 1989c) com desdobramento possível em manifestações de adoecimento e afastamentos por questões de saúde. Afastamento que é um direito do trabalhador e da trabalhadora, mas também outra forma de punição, uma vez que vigora como critério para as promoções e progressões a interrupção da contagem de tempo, seja ela da natureza que for.
Acrescenta-se a essa carga de trabalho, a insegurança nos critérios de promoção relacionados à obrigatoriedade da qualificação e ao direito de readequação por aquisição de titulação. São inúmeros os casos de trabalhadores que tiveram seus pedidos de readequação na carreira pela aquisição de titulação. As negativas aos pedidos tem sido a tônica no Sistema, de modo que a via resolutiva tem sido a interpelação judicial para que se faça cumprir a lei. Porém, não há um acórdão sobre a questão e, novamente, as decisões dependem da relação entre os juízes das comarcas e os diretos das unidades prisionais, conforme relatos coletados em campo.
Prima face a insegurança nas relações de trabalho no Sistema Prisional parece ser um contrassenso dada a estabilidade no serviço público. Contudo, essa estabilidade pouco significa quando a qualquer momento é possível ocorrer uma redistribuição intempestiva, ou, de uma forma mais geral, passa a pesar sobre o futuro da categoria a insegurança sobre o enquadramento das carreiras do corpo técnico da assistência face à Emenda Constitucional que cria o órgão de Polícia Penal.
A saber, a Polícia Penal é uma instituição relativamente nova no Brasil, oficializada pela Emenda Constitucional nº 104 de 2019 (Brasil 2019), que incluiu a carreira no rol das forças de segurança pública. A sua principal função é a de atuar na custódia, vigilância e segurança dos estabelecimentos penais, consolidando o papel dos agentes penitenciários como parte integrante do sistema de segurança pública. Essa mudança trouxe novos desafios e abriu espaço para discussões sobre a identidade e os objetivos dessa categoria profissional.
O principal conflito enfrentado pela categoria técnica está no dilema entre lutar para que todos os integrantes do sistema se tornem oficialmente policiais, adquirindo assim os direitos e garantias associados às forças de segurança, ou preservar a autonomia do corpo técnico que trabalha nos estabelecimentos penais, sob abordagens interdisciplinares menos repressivas.
A primeira abordagem, ao enfatizar o caráter policial, pode garantir benefícios como aposentadoria especial, maior acesso a armamento e valorização institucional, mas pode também reforçar um modelo punitivista e a gestão pelo medo que prioriza a segurança em detrimento do cumprimento da pena. Por outro lado, a manutenção de um corpo técnico desvinculado do caráter policial busca preservar a identidade original das categorias que é centrada na execução penal e na garantia dos direitos das pessoas privadas de liberdade, sem a conotação militarizada. Essa postura valoriza o papel de assistentes sociais, psicólogos, pedagogos e outros profissionais que atuam no sistema penitenciário, defendendo um modelo que priorize a assistência efetiva às PPL. No entanto, essa escolha pode deixar a categoria com menos reconhecimento e direitos em comparação às forças policiais, exigindo uma luta mais efetiva da categoria para frear a precarização das condições e das relações de trabalho, logo para a mitigação das suas manifestações de adoecimento.
6 Por que nossas condições de trabalho são assim?: o projeto de cárcere
Para responder essa pergunta, não é possível analisar o cárcere por si só, pelo contrário, necessita-se buscar como ele é produto de um processo econômico-jurídico. Observando o interior do cárcere sob o ponto de vista econômico, Fernandes e Ferraz (2023) indicam que a essência do ser do Sistema Prisional é a punição na forma de privação da liberdade. Essa forma de ser da punição permite que o cárcere assuma quatro funções econômicas, sendo elas: i) lócus de produção de valor e mais valor - dentro dos parâmetros das parcerias público-privadas - por meio da suposta constituição da dignidade humana pelo trabalho; ii) elemento que institui, na luta intra-capitalista pela apropriação do mais valor, uma vantagem competitiva para determinados grupos de capitalistas oportunizado pela operação da valorização segundo uma composição orgânica do capital intensivamente sustentada pela exploração da força de trabalho em detrimento de investimentos em capital constante; iii) mecanismo produtor de um exército de reserva encarcerado; e, iv) mecanismo que barateia o valor da força de trabalho na particularidade do cárcere. Para a perpetuação dessas funções é que se demanda a cooperação simples subsumida à divisão técnica-capitalista do trabalho entre os trabalhadores do corpo da segurança e os da assistência. Porém, cabe ainda perguntar porque o atual estágio do capitalismo necessita de uma entidade que possua como sua essência a punição com privação da liberdade?
Sucintamente, podemos afirmar que essa entidade chamada de Sistema Prisional cuja materialidade é a expressão do trabalho em condições precárias, conflituosas e com cargas de trabalho que levam ao adoecimentos a grande maioria dos que labutam nas unidades prisionais resulta da necessidade do processo de valorização do valor segundo uma luta intra-classe capitalista: luta que ocorre fora das unidades prisionais, mas que as determina; luta que tem como agentes um estrato da classe burguesas que por força da lei é considerado ilegal por produzir e comercializar determinadas mercadorias e, justamente por ser uma indústria ilegal, pode submeter seus trabalhadores - potenciais apenados - as mais violentas condições de trabalho e; por outro estrato da classe burguesa que, por força da lei, não pode explorar seus trabalhadores com o mesmo grau de violência, porque são indústrias ditas legais, mas podem valer-se do combate a ilegalidade ou dos trabalho dos apenados como forma de garantir um mercado a ser explorado.
A expressão mais imediata dessa luta é sentida pelas trabalhadoras e pelos trabalhadores da segurança e da assistência na forma de expansão da atuação do Primeiro Comando da Capital, do Comando Vermelho e de outras milícias dentro do sistema; como também, pela expansão das parcerias público-privadas e os movimentos sempre presentes de privatização das unidades prisionais. Para entender essas manifestações é importante considerar que o Direito Penal cumpri a função de delimitar quais atividades produtivas são legais e quais são ilegais, e que os investimentos do Estado ou a ausência deles efetiva o quão poroso é o invólucro que circunscreve o espaço legal/ilegal e a transformação de sujeitos em criminosos que se tornam objetos de trabalho para os Auxiliares, Assistentes, Analistas e Médicos do Sistema Prisional.
6.1 O Direito Penal e a porosidade do invólucro legal/ilegal (ou As bases por onde se movem a indústria ilegal)
Cotrim (2015, p. 345) (Cotrim 2015) a partir de Marx, coloca que para o valor se impor como uma lei social, é necessário uma condição em que o conjunto do trabalho social (do qual os trabalhos individuais são parte alíquotas) tenha como nexo o sistema de troca pautado “na autonomia dos produtores e na alienação como forma de apropriação”. É nessa condição que a concorrência se impõem entre os membros da classe capitalista, pois cada capitalista particular não se apropria do mais valor exclusivamente produzido pelos trabalhadores que emprega e, sim, do mais valor social realizado quando as mercadorias são trocadas entre si numa relação entre capitalistas (ainda que mediada pelos trabalhadores do comércio).
É na troca que o valor das mercadorias se impõe, mas a forma preço não expressa imediatamente o valor das mercadorias, pois “o preço é a expressão monetária do trabalho objetivado na mercadoria” (Marx, 2013, p. 176). Ele não necessariamente corresponde quantitativamente ao valor das mercadorias, pois o valor (trabalho socialmente médio) tem seu quantum determinado pelas necessidades da produção; o preço é a expressão do valor na esfera da troca na mercadoria por dinheiro, dois momentos independentes ainda que necessários para o movimento geral. Eis porque Marx (2013 p. 177) afirma:
A possibilidade de uma incongruência quantitativa entre preço e grandeza de valor, ou o desvio do preço em relação à grandeza de valor, reside, portanto, na própria forma-preço. Isso não é nenhum defeito dessa forma, mas, ao contrário, aquilo que faz dela a forma adequada a um modo de produção em que a regra só se pode impor como a lei média do desregramento que se aplica cegamente
A incontrolabilidade ou irracionalidade da sociabilidade capitalista provém da busca racional de agentes privados, independentes e em concorrência atuarem simultaneamente para se apropriar da maior cota possível do mais valor social. Mas essa corrida não depende da vontade de cada agente privado, como já expunha Marx, estão eles submetidos ao movimento necessário do valor pela sua autovalorização, “já que o valor global das mercadorias regula a mais-valia social, e esta, por sua vez o nível do lucro médio, e portanto, da taxa geral de lucro - como lei geral, ou como lei que domina as oscilações -, então a lei do valor regula os preços de produção” (Marx 2015) estabelecidos na concorrência entre os ramos de produção.
A taxa média de lucro tende a queda, pois a fonte de sua substância reguladora - o trabalho vivo explorado - tende a ser reduzida com o aumento da produtividade social do trabalho. Frear essa queda exige dos agentes privados uma série de medidas contra-arrestantes, assim, respostas para frear a tendência de queda da taxa de lucros são múltiplas como são múltiplos os seus desdobramentos.
No que nos interessa aqui, cabe destacar como o Direito Penal ganha funcionalidade enquanto mecanismo que permite a criação de condições que permitam o aumento da exploração do trabalho e a distribuição do mais valor social nas formas de renda, lucro e juros, ou seja, a circulação do valor apenas no circuito das mãos capitalistas. A proibição do cultivo da planta herbácea Cannabis sativa é um exemplo histórico de resposta.
Criminalizar a produção de uma planta matéria prima de um setor industrial para garantir um mercado consumidor de mercadorias cuja fonte é outra planta pode ser acionada como forma artificial de frear a queda da taxa de lucros para alguns capitalistas privados pela aniquilação de outros. Mas essa é a forma mais imediata pela qual a criminalização de uma mercadoria atua. Quando a troca das mercadorias é universalizada, medidas tomadas nos países que reúnem a concentração do capital determinam as relações capitalistas nos demais países, estabelecendo limites à apropriação do mais valor no circuito das trocas e recolocando a necessidade do aumento da taxa e da massa de mais-valor nesses setores produtivos.
Quando o Direito Penal define o caráter ilegal de uma dada mercadoria, isso de modo algum retira deste produto do trabalho humano no capitalismo sua forma determinada de mercadoria. Criminalizar a produção de um produto pelas características imanentes do mesmo na relação em que eles são postos não faz com que essas características deixem de ser um valor de uso, tampouco que ele deixe de ser substrato para uma produção voltada à troca, mas define as possibilidades em que a produção de tal mercadoria se efetiva para garantir as metamorfoses do valor - possibilidades que garantem à classe capitalista o uso indiscriminado da violência como forma de aumentar a taxa de mais valor e a redução dos custos do trabalho envolvido nas atividades de realização do valor.
Na concretude das condições de trabalho, o aumento da taxa de mais valor é possível pelo rebaixamento dos salários decorrentes das condições de reprodução da vida imposto violentamente aos trabalhadores e trabalhadoras destes setores carimbados como ilegais; por sua vez, a massa de mais valor é aumentada pela quantidade de mãos ocupadas em setores que não operam a substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto; essa mesma base suportam a reduções dos custos da força de trabalho ocupada na circulação. Por um lado, se a criminalização da mercadoria afastou a necessidade do mais valor assumir a figura de imposto e rumar para o fundo público (ainda que, por vezes, tenha que assumir a forma transmutada de propina [1]); por outro, cota parte dele necessita ser convertido em meios de garantir as condições de seguridade para as trocas da mercadoria sem a proteção - e muitas vezes, sob ameaça - do Estado. Tal necessidade, tem um duplo aspecto: impulsionar o setor legal da economia, sobretudo o armamentício (compras de armas pelos capitalistas do setor ilegal e pelo Estado) e da segurança (seja ela pública ou privada), como também oportuniza a expansão do setor e a centralização do capital, posto que sob a livre concorrência do mercado ilegal paira a mão armada de seus agentes [2]. O Direito Penal, portanto, permite que nesse campo particular da exploração capitalista - a concorrência entre os capitais privados - possa, em última instância, tomar a forma imediata da violência fatal da máxima exploração onde a vida humana esvaí cotidianamente no processo de consumo da força de trabalho, quando esta não é interrompida, bruscamente, neste mesmo processo em função da perpetuação da valorização do valor.
[1] A transmutação de cota parte do mais valor em propina opera no espaço livre da submissão desses capitalistas particulares a uma série de obrigações sociais postas por outros campos do direito. A condição de produtores ilegais de mercadorias liberta-os das obrigações frente ao Direito tributário, trabalhista, ambiental, etc.
[2] Fatal para os indivíduos que encontram nela e em torno dela (no caso dos trabalhadores que operam no combate à dita ilegalidade) o local onde ocupar sua capacidade de trabalho; mas não para o próprio processo de valorização, revelando que são as condições desse processo de trabalho de mercadorias carimbadas de ilegais as produtoras de subjetividades que naturalizam o matar e o ser morto como parte da carreira (para os trabalhadores considerados legais da segurança pública, essa naturalização tem até nome no direito do Trabalho: periculosidade).
O Direito, como já dito, não institui a realidade, mas o reconhecimento do fato. O Direito Penal que transmuta em ilegal um setor produtivo reconhece a necessidade do processo de valorização de colocar em marcha o mais alto grau de exploração da força de trabalho como modo de frear a queda tendencial das taxas de lucro pela equalização na esfera da circulação das mercadorias em geral. Posto que, ainda que ilegal, segue sendo mercadoria. Ao reconhecer este fato, o Direito produz o criminoso, agora não mais como um indivíduo isolado em resistência às suas condições de dominação; mas como indivíduos que, por estarem isolados (desprovidos dos meios de produção dos bens necessários à reprodução de sua existência), fluem para os setores em que as suas capacidades físicas-psíquicas objetiva e subjetivamente foram forjadas para serem consumidas: a indústria ilegal. Com isso, esperamos afastar o entendimento de que se entra para “o mundo do crime” porque se é criminoso. É ao atuar como trabalhador e trabalhadora nesse processo de valorização do valor reconhecido pelo Direito como ilegal que se faz o criminoso.
Trabalhar no setor ilegal da economia não é algo que faz parte da subjetividade do sujeito desde o seu nascimento, expressando assim a existência de “perfil criminológico”, mas ao contrário, são os indivíduos que, ao nascerem, encontram a disposição um conjunto de condições objetivas marcado por uma alto grau de violência, exploração e, consequentemente, pauperidade, enquanto uma realidade produzida pelo capitalismo, a partir das quais, nas relações travadas por cada um, se constituem sua subjetividade que pouco espaço tem para se constituir de modo a não ser a expressão das condições dadas. Nas palavras de Marx (2015):
Violações da lei geralmente emergem como resultado de ações econômicas (economical agencies), que se encontram além do alcance dos legisladores; mas, assim como a aplicação (the working of) da Lei da Delinquência Juvenil demonstra, depende, em certa medida, da sociedade oficial [1] (official society)[Estado] carimbar (to stamp)[2] certas violações como crimes ou como meras transgressões. Tal diferença de nomenclatura, longe de [ser] indiferente, decide o destino de milhares de homens, além da postura moral (moral tone) da sociedade. A lei mesma não deve apenas punir crimes, mas remediá-los, e a lei dos advogados profissionais é bastante apta a trabalhar nesta direção. Desta mesma forma, foi bem apontado por um eminente historiador que os clérigos católicos de tempos medievais, com suas visões obscuras da natureza humana, introduzidas por sua influência na legislação criminal, criaram mais crimes do que pecados veniais.
[1] Sociedade oficial (official society), segundo os revisores, Vitor Bartoletti Sartori e Elcemir Paço Cunha, refere-se ao Estado.
[2] Segundo Sartori e Paço-Cunha (2015): “Uma ironia de Marx em referência à ‘sociedade oficial’ que defronta tais problemas sociais com um carimbo (stamp)”
O processo de produção/realização de mais valor nos setores ditos ilegais, se por um lado determina as condições concretas do consumo e da reprodução da força de trabalho, por outro, expressa a equalização dessas forças em trabalho social médio: trabalho abstrato. E, assim, a única diferença, sob o ponto de vista do valor, entre ser seu substrato considerado legal ou ilegal é que, em determinadas condições, a forma equivalente da realização do valor - o dinheiro adquirido na troca da mercadoria ilegal - carece circular por meios considerados licitos e, assim, prestarem contas do seu lastro concreto aos órgãos reguladores do Estado. Necessidade que engendra atividades legais que servem a “lavagem de dinheiro”, seja elas atividades produtivas do setor de serviço que permitem superestimar seus ganhos, seja por atividades religiosas que podem adquirir dinheiro por doação, seja por meio de grandes transações econômicas via sistema financeiro. Inúmeras são as atividades que permitem carimbar com o símbolo de legalidade os montantes monetários adquiridos com a troca de mercadorias rotuladas de ilegais. Afinal, o rótulo de mercadoria legal ou ilegal não altera o fato de que o conteúdo objetivo da circulação do dinheiro como capital - o mais valor - seja a finalidade subjetiva do capitalista em geral.
E, como nos lembra Marx (2013, p. 230) “O capitalista sabe que toda mercadoria, por mais miserável que seja sua aparência ou por pior que seja seu cheiro, é dinheiro não só em sua fé mas também na realidade […]”.
Assim, a busca incessante do capital pela sua autovalorização tensiona o Estado a ora assumir postura ativa no conflito entre um setor legal e outro ilegal, ora deixar o Direito ser letra mortal. Nessa conformação do Estado que se desenha o que é o Projeto de Sistema Prisional enquanto um espaço em que a punição ora é intensificada, ora arrefecida; ora o Sistema Prisional aparece como espaço de vigilância constante e punitividade - o projeto punitivista do Estado, ora o Sistema Prisional aparece como possível de permitir o acesso aos trabalhadores apenados à direitos que, inclusive, muitos trabalhadores fora do sistema, não acessam - o chamado Sistema Prisional com pleno respeito aos Direitos Humanos.
Esse movimento pendular é o movimento que determina como são as condições de trabalho no cárcere, as relações de trabalhos entre os corpos de servidores públicos, os modos de gestão e, assim, determinam-se as cargas físicas-psíquicas que levam ao desgaste da classe trabalhadora no sistema e suas formas de resistir produzindo, assim, concomitantemente tanto o cárcere como a saúde-doença dos Auxiliares, Assistentes, Analistas e Médicos do Sistema Prisional Mineiro.
Observamos que, a palavra aparece aqui remete à primeira forma de apreensão desses projetos. Em última instância, o que observamos é que, nem sequer no último almejado modelo, seria possível um desenvolvimento plenamente humano para as pessoas privadas de liberdade e para os trabalhadores da segurança e da assistência. Afinal, como demonstrado, o cárcere é o resultado de um modo de produção em que a riqueza material tem base na exploração humana assentada na desumanização.
7 Como mudar isso?: produzindo saúde pela resistência e luta
Toda manifestação de saúde-doença, seja física ou mental, é a manifestação do nexo-biopsíquico existente em nossa corporeidade produzido pela unidade entre dois momentos, a saber: o tempo em que desenvolvemos atividades que consomem nossas energias biopsíquicas, ou seja, que nosso corpo-mente relaciona-se com o mundo externo de modo que efetua-se um desgaste decorrente da transformação da capacidade de trabalho em ato de trabalho; e o momento que desenvolvemos atividades com fins de reposição das energias desgastadas. Na sociedade capitalista, esses dois momentos estão bem demarcados entre o tempo da jornada de trabalho e o tempo da reprodução da vida. Assim sendo, as manifestações de saúde-doença são, também, produtos da luta de classes.
Como demonstrado REPORTAR, o Estado materializa um projeto de Sistema Prisional conforme as necessidades do processo de valorização do valor - e apropriação do mais-valor - conforme diferentes estratos da classe capitalista em disputa (indústria legal e ilegal). Atender essas necessidades demanda não somente o estabelecimento de leis, mas a disponibilidade de infraestrutura e pessoal capaz de materializar o projeto dominante.
No item REPORTAR deste texto, observamos que no projeto em questão a cariz dominante é o controle e a ordem pela violência, seja a física destinada sobretudo às pessoas privadas de liberdade; seja as violências relacionais estabelecidas no processo de trabalho que decorrem tanto do déficit de pessoal da assistência quanto de infraestrutura para o trabalho. Esse modo de operação dos governos aparece aos trabalhadores e trabalhadoras como descaso, sendo sentido, inclusive, na falta de apoio quando de situação de adoecimentos.
Tem sido projeto do Estado permitir que se desenvolvam condições e relações de trabalho que adoeçam os Auxiliares, Analistas, Assistentes e Médicos do Sistema Prisional e, assim, não é surpresa que iniciativas de promoção e/ou prevenção à saúde não se tornem conhecimento das categorias e que quando existentes, são consideradas insatisfatórias.
Sob condições de trabalho adoecedoras produzidas por um projeto de cárcere que não atende interesses da classe trabalhadora, as manifestações de adoecimentos só podem ser freadas por ações de resistência individual, coletiva e de luta.
As resistências individuais são realizadas cotidianamente, seja dentro da jornada de trabalho ou fora dela. Contudo, elas retroagem de forma limitada uma vez que transferem para o indivíduo o ato de não adoecer. Deste modo, as resistências individuais ao mesmo tempo que podem amenizar ou retardar manifestações de adoecimento, podem ser base para seu aprofundamento quando da manifestação, sobretudo ao se tratar de manifestações vinculadas à saúde mental. Isso porque, as resistências individuais produzem tanto uma adaptação do corpo-mente às precárias condições de trabalho quanto desencadeiam processos de culpabilização dado o estreito potencial dessas práticas que alteram minimamente o ambiente adoecedor atuando no controle da adaptação do corpo-mente do trabalhador e da trabalhadora a esse ambiente.
As estratégias individuais de adaptação, em geral, atuam no campo da ressignificação do ambiente e das relações laborais, tais como inserir elementos que contraste com o clima de violência presente nas unidades prisionais (uso de flores, objetos coloridos e até mesmo retratos de entes queridos, são um modo de tornar o ambiente um pouco mais familiar induzindo uma sensação de controle pessoal sobre o ambiente). Porém, o processo de produção da saúde-doença é um processo relacional, não depende apenas do sujeito, mas dos processos em que as energias físico-psíquicas são consumidas e reproduzidas, isso demonstra o baixo potencial das medidas de controle pessoal do ambiente que é reforçada pelo alto índice de afastamentos, a prática individual possível após as manifestações da doença.
O afastamento do trabalho é uma prática individual de resistência à medida que possibilita ao trabalhador um tempo para o restabelecimento de sua saúde. Contudo, um grande problema que se coloca é a permanência da condição laboral que produziu o adoecimento. Embora o afastamento seja uma prática individual de resistência vivenciada por uma grande maioria de trabalhadores e trabalhadoras do sistema, a magnitude dessa prática não surta efeitos em âmbito estatal para que se combata as condições adoecedoras, assim, a reincidência do afastamento se torna uma realidade - aquela que produz resistências coletivas, tais como a organização das diferentes profissões junto aos respectivos Conselhos.
A questão contraditória está no fato dos Conselhos Profissionais serem autarquias federais corporativas, por isso há certos espaços de participação dos trabalhadores e trabalhadoras na elaboração de diretrizes para o efetivo exercício profissional. Importante destacar que, aos Conselhos cabe a fiscalização do cumprimento das diretrizes e, em última instância, essa fiscalização não protege o profissional, mas o paciente/usuário/cliente - no caso do Sistema Prisional, a pessoal privada de liberdade enquanto objeto de trabalho. Assim, a organização de resistência coletiva nos Conselhos busca alterar as condições de trabalho dos Analistas e Médicos por meio da defesa dos direitos da PPL. Ao estabelecer os limites mínimos do direito dos PPLs, seriam elaboradas diretrizes específicas para o exercício da profissão da área da saúde e da assistência social, o que teria o potencial de retroagir sobre as condições de trabalho dos últimos. Por um lado, essa prática de resistência coletiva tem potencial de unificar os trabalhadores em torno de um objetivo que, de forma mediada, pode alterar o processo de trabalho; por outro, ela tem como fundamento a perpetuação da produção do cárcere e como limite de modificações à esfera estatal. Esfera que não só é permissiva a produção de um cárcere adoecedor, como é sua fonte.
Assim, a organização da resistência por meio dos Conselho demonstra seu limite: ela é a organização que tensiona o projeto já existente, tendo a potência de buscar alterações contingencias na esfera de cada profissão e dentro dos limites postos por uma autarquia que é braço da entidade que impõe o projeto, o próprio Estado.
Se por um lado, a organização da resistência por meio e nos Conselho oportuniza a criação de laços entre trabalhadores e trabalhadoras que compartilham as singularidades do processo de trabalho decorrente do saber técnico ainda que estejam em diferentes unidades prisionais, por outro, limita o estabelecimento da unidade com as demais profissões. Essa unidade é, por sua vez, demandada por outros aspectos das condições e relações de trabalho que toca a todos e a todas, as questões salariais e de carreira, por exemplo. E, assim, mesmo que não se tenha a intenção de construir um instrumento que seja da e para a categoria, o sindicato é o espaço da organização da resistência unificada. Eis a razão de campanhas que atribuem à quem luta por meio desse instrumento de classe uma imagem pejorativa.
Organizar a união dos trabalhadores e trabalhadoras é, historicamente, o modo de fortalecer o projeto de quem trabalha em contraposição ao projeto patronal e estatal. A institucionalização dessa organização se dá no instrumento sindicato, assim, o limite dos sindicato é dado pela força da organização dos Auxiliares, Assistentes, Analistas e Médicos do Sistema Prisional, diferente do que ocorre com os conselhos que tem o limite da forma juridica ligada ao Estado.
O corpo técnico da assistência do Sistema Prisional constitui seu instrumento de luta, o Sindasep. As bandeiras de luta do Sindicato e o projeto que ele contrapõe ao projeto estatal é a síntese do que está sendo a união dos trabalhadores e trabalhadoras, união que é também permeada por dissensos. A tarefa posta é construir o consenso no dissenso para avançar nas alterações necessárias dos processos de trabalho na defesa da saúde de todas as trabalhadoras e trabalhadores do Sistema Prisional, inclusive, das pessoas privadas de liberdade.
Na luta sindical, a instituição de uma pena que tenha a garantia do tratamento a PPL pautada pelos Direitos Humanos não é efetivada por meio da defesa do objeto de trabalho, mas das condições em que esse objeto é trabalhado. Assim, na luta sindical, a produção de um cárcere que respeita a dignidade humana dentro do capital se efetiva pelas necessidades dos auxiliares, assistentes e analistas do Sistema, de modo que lutar por condições e relações de trabalho produtoras de saúde do corpo técnico de assistência é também lutar pelos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras momentaneamente privados de liberdade. Mas não se restringe a esses dois grupos, posto que alterações nesse rumo criam também as condições possíveis de reduzir o adoecimento do corpo da segurança.
E o corpo técnico de assistência reconhece que o instrumento sindical pode contribuir para melhorias nas suas condições de trabalho e situação de saúde no Sistema Prisional (78,6% dos respondentes da enquete afirmaram acreditar nesse potencial), porém uma pequena parte (5,8%) da categoria se envolve em atividades políticas ou sindicais enquanto meio de cuidar da saúde.
Uma tarefa está concretamente posta: alavancar o envolvimento de todos e todas com as lutas que unem as diferentes profissões que constituem o corpo técnico da assistência no Sistema Prisional, posto ser este um meio não apenas de produzir saúde desse grupo de trabalhadores e trabalhadoras, mas sim avançar na conquista de um projeto de produção do cárcere que não seja predominantemente adoecedor para o conjunto dos trabalhadores que nele existem e resistem.
Parte da história de existência e resistência está relatada no documentário Memória Sindasep: breve relato de liberdade, igualdade e luta disponível em https://www.youtube.com/c/REDETRAMA
Luta: pressuposto para que se possa produzir uma sociedade onde a produção da saúde ocorra sobre condições realmente igualitárias e livre.
8 Glossário
Abaixo, compartilhamos estão algumas categorias e/ou conceitos fundamentais para apropriação da classe trabalhadora:
Processo de Trabalho é toda atividade que envolve pelo menos três elementos, a saber: o objeto a ser trabalhado (matéria-prima), os meios de trabalho (matérias auxiliares e meios de produção) e o ato de trabalhar. Objetiva-se com este processo a obtenção de um efeito útil do trabalho. Em um processo de trabalho há, portanto, uma finalidade ao ser alcançada por meio de uma atividade intencionalmente orientada. Na sociabilidade capitalista, os processos de trabalho em geral estão subsumidos aos processos de valorização do capital, isso porque os objetos e meios de trabalho assumem a forma de propriedade privada dos meios de produção e a efetivação do trabalho só é realizada por meio da compra da força de trabalho fazendo com que a relação de trabalho assuma a forma de relação assalariada. Essa forma determinante da esfera produtiva capitalista se expande inclusive para processos de trabalho que não estão diretamente envolvidos em processos de valorização do capital, ainda que lhes sejam acessórios à medida que criam as condições necessárias para processos de valorização.
Mercadoria é tudo que tem valor de uso (sendo portanto capaz de satisfazer necessidades humanas de qualquer ordem) e é produzido para a troca. Mercadorias não são as coisas, mas uma forma que adere às coisas (sejam coisas com materialidade, seja o efeito útil de um trabalho) devido a relação que as produziu, relações de produção voltadas para a troca. Nesse sentido, a capacidade de trabalho, sendo a única coisa que os trabalhadores têm a oferecer para a venda - e assim adquirir meios para compras de outras mercadorias necessárias a sua reprodução - assume a forma de mercadoria. Os indivíduos não são produzidos como mercadorias, entretanto, a única forma de adquirir o necessário à nossa reprodução é vendendo essa capacidade (potência) de trabalhar, ela assume a forma de uma mercadoria, a mercadoria força de trabalho.
Desgaste da força de trabalho é considerado como a perda das energias físico-psíquicas decorrentes da efetivação do trabalho pelos trabalhadores e trabalhadoras que vende sua capacidade de trabalho na forma de mercadoria. A intensidade com que direcionamos nossa concentração mental e nossa força física numa atividade e a extensão temporal desse direcionamento é determinado pelo processo de trabalho que, por sua vez, atende direta ou indiretamente às necessidades do movimento de valorização do capital.
Carga de Trabalho pretende alcançar uma conceituação mais precisa do que temos consignado até o momento com a pré-noção de “condições ambientais” no que diz respeito ao processo de trabalho. Dessa forma busca-se ressaltar na análise do processo de trabalho os elementos deste que interatuam dinamicamente entre si e com o corpo do trabalhador, gerando aqueles processos de adaptação que se traduzem em desgaste, entendido como perda da capacidade potencial e/ou efetiva corporal e psíquica. Vale dizer, o conceito de carga possibilita uma análise do processo de trabalho que extrai e sintetiza os elementos que determinam de modo importante o nexo biopsíquico da coletividade trabalhadora.
Nexo biopsíquico “é a expressão concreta na corporeidade humana do processo histórico num período determinado” (Laurell e Noriega, XXXX, p. X). A investigação do nexo biopsíquico não se trata da investigação das manifestações individuais da saúde e da doença, mas da constituição de uma expressão da corporeidade humana numa determinada relação com o mundo segundo padrões de desgaste e reprodução das energias físico-psíquicas. O nexo biopsíquico, portanto, é determinado pelo modo de produção que reina em uma determinada época histórica, pois é ele que determina os padrões de desgaste-reprodução e a resistência a esses padrões. Com isso, constitui-se um nexo biopsíquico que é substrato para as manifestações de saúde-doença conforme a adaptação do indivíduo aos processos de trabalho e de reprodução da vida.
Divisão técnica do Trabalho refere-se a parcialização capitalista do labor a partir de conhecimentos e habilidades específicas voltadas para o controle dos elementos (naturais e humanos) do processo de trabalho. A divisão técnica do trabalho fixa os indivíduos dentro de um determinado leque de atuação.
Produção do Cárcere envolve todas as condições e relações de trabalho que produzem o cárcere como ele está sendo. A produção do cárcere ocorre no dia a dia e é a expressão da unidade de múltiplos processos de trabalho que, por sua vez, são determinados pela necessidade de operacionalizar a pena de privação da liberdade, vis a vis com a obrigatoriedade do trabalho dos encarcerados, como forma de punição aos indivíduos que fora do cárcere estão envolvidos em atividades transformadas crimes pelas regulamentações jurídicas de um país conforme os diferentes interesses da classe que domina na sociedade.